domingo, 20 de março de 2011

Conta-me uma história - |V

Após a noite ter chegado ao fim e das últimas horas da manhã estarem a terminar, Afonso, acorda um pouco atordoado no meio do chão da sua sala. Em cima do cobertor quem tem tapando seu corpo nu, estava o seu gato a dormir, sentido o aconchego do dono. Os estores completamente abertos mostram um dia cheio de luz e completamente limpo, no entanto, ele sentia frio e olhou em seu redor e sabia, ela já não estava lá. Não se sentia a presença dela, da mulher que naquela noite o fez viajar por mundos e constelações. Automaticamente, dirigiu-se ao quarto, vestiu-se e logo de seguida saiu de casa. Como encontra-la se não sabia o nome? Onde encontra-la se só a tinha conhecido um dia antes e o imenso pouco que sabia dela, não era suficiente para conhece-la? Como é que se vai encontrar alguém que não quer ser encontrada? A única coisa que ele sabia é que não podia procura-la, tinha de a encontrar da mesma maneira que a encontrou pela primeira vez: naturalmente.
A rua estava sossegada e as pessoas ainda tomavam os seus cafés nas esplanadas da rua. O jovem dos jornais descansava um pouco a sua voz de tanto falar em mortes e na crise, quando ele sabia que a única coisa que as pessoas não queriam ler era sobre esses temas.
Percorreu a rua, passando por umas três ou até quatro capelas, mais umas tantas lojas e o dobro dos cafés até encontrar uma praça. No centro, um parque infantil onde os pais deixavam as suas crianças brincar as suas primaveras. Mas nem todas eram crianças: Sentada num baloiço estava uma rapariga, que (mais uma vez) só o chão admirava o seu rosto. Afonso aproxima-se do parque infantil e de fora do recinto gritou à rapariga: "É só uma dica: O baloiço só funciona se deres lanço!"
A rapariga reagiu a voz conhecida, limpou o que pareciam lágrimas e sorriu na direcção da voz. Era ela, Clara, que lhe respondeu : " Se houvesse quem me empurra-se..."
Afonso avançou para o interior do parque e sentou-se ao lado dela, "Não precisas que ninguém te empurre" disse ele "Basta te impulsionares com os pés para a frente e para trás, até ganhares a força e o equilíbrio necessário para te pores em movimento". Demonstrando-lhe aquele movimento, ela começou a balançar. Começou a sorrir enquanto se divertia, mas Afonso muito sério fixou o seu olhar no nada o que lhe intrigou e levantando-se do baloiço pondo-se na frente dele perguntou-lhe "O que se passa?"

Ele respondeu-lhe, "Tu não precisas que ninguém te empurre. Apenas precisas de alguém ao teu lado, a força e a coragem, és tu que a tens."

Até ao fim do Fim - Ana Moura

quinta-feira, 10 de março de 2011

Conta-me uma história - |||


Andaram durante pouco mais de uma hora. Caminharam pelas ruas, pelas flores que as floristas estavam a vender logo pela manhã, pelos aromas que aquelas esplanadas traziam, umas a tabaco, outras ao café após almoço e em algumas ainda o almoço na mesa estava. Afonso não largava a mão dela como ela não largava o braço dele… Ao longe faziam confusão a algumas pessoas, mas eles não queriam saber, o mundo era deles, o pequeno mundo que se estava a criar. O prédio do Afonso era no centro da cidade, numa zona bastante calma, apenas com alguns vizinhos que já se lamentavam não ter mais gatos para alimentar e que apenas queriam contar histórias aos seus netos. Quando se abriu a porta da casa dele, ela tremeu pela segunda vez desde de que se viram pela primeira vez, automaticamente, Afonso pergunta-lhe baixinho, como se não quisesse acordar ninguém, “Estas bem?” ao que ela só acenou que sim. Encaminhou-a para a sala e disse-lhe para esperar ali pois ele ia preparar a casa de banho para ela para ela tomar um duche e que já voltava. Tranquilamente ele aproximou-se dela e beijou-a na testa ao que ela suspirou e depois de sorrir deixou-a na sala.

A sala dele era bastante simples: alguns livros nas estantes, onde se lia livros de poesias, de prosas, de arte e um de desporto. Na prateleira debaixo tinha alguns cd’s, vinis e até uns dvd’s. No centro da sala, uma mesa de luz deixava mostrar o mais recente desenho dele: Uma mulher abraçada a um lobo. Ela de olhos fechados e o lobo sério olhava para quem estava a ver a pintura, fazendo com que ela se sentisse com receio de olhar para a mulher. Quando se encostou ao sofá, sentiu algo a mexer-se debaixo do cobertor que lá estava. Assustou-se e com o susto saltou um gato debaixo do cobertor deixando-a colada ao chão. Com o grito dela, Afonso veio a correr e vendo o que se estava a passar, começou a rir-se como um perdido. Ela corada disse lhe em tom de ordem “Onde esta a piada?!” Contendo-se para não rir, embora um sorriso tivesse surgido, disse-lhe “É apenas o meu gato” dizendo isto dirigiu-se ao gato, pegando nele acrescentou, “É a minha única companhia nesta casa”. É aqui que ela olha para o Afonso pela primeira vez com olhos de admiração e se apercebe o quanto lindo era a flor da idade daquele rapaz que ali estava. Voltou a olhar em volta e apercebeu-se de uma guitarra e até de um violino, e vendo aquilo, perguntou “Sabes tocar violino?”. A reacção dele foi de espanto, quase como ele já nem se lembra-se que tinha lá aquele instrumento. Respondeu em tom de tristeza ou até de lembrança “Isso tinha significado a um tempo atrás… agora já não faz sentido” e logo depois olhou para ela “Bem, tens a casa de banho toda para ti, esta a tua vontade”.

Deitada na banheira, enquanto o incenso lhe percorria os pulmões, ela fechou os olhos e sonhou. Sonhou com os dias de criança em que brincava com a sua irmã as escondidas e que ela era sempre apanhada “Apanhei-te Clara! Agora és tu!”. Clara, nome escolhido pela mãe e concordado pela madrinha. A mãe como grande devota a Francisco de Assis, quis dar o nome a uma das filhas como era o nome da companheira deste santo e do mesmo modo a madrinha se lembrava da parábola do lobo. Durante o sonho, ela esta no quarto e começa a ouvir um violino. A melodia era tão linda que fez com que a Lua sorri-se no meio da noite e que as árvores dançassem, e de repente, num sobressalto, ela acorda numa banheira, onde o incenso já não tinha mais por onde arder e apercebeu-se que o violino não era um sonho, mas sim o Afonso a tocar. Saiu da casa de banho assim como o mundo a viu nascer e ali estava ele: no meio da sala de costas voltadas para ela com o violino nas mãos. Nas suas costas estava tatuada uma pena envolta em chamas e o cabelo dele estava solto. Devagar, ela aproximou-se dele, encostou-se a ele, ao que ele responde, “Estas bem? Precisas de alguma coisa?” Ao que ela fechando os olhos lhe disse “Sim, preciso de ti” No escuro, beijaram-se e mesmo ali no sofá se deitaram até o nascer da manhã seguinte.

sábado, 5 de março de 2011

Conta-me uma história - ||

Pouco depois do comboio em direcção ao Porto partir, já eles estavam num simples café da zona da estação. Ela ainda trazia consigo o bilhete na mão e parecendo que não, já não era apenas o chão a admirar a sua beleza: o seu rosto era lindo, tal como os olhos que enchiam de inveja as lagoas mais lindas alguma vez descobertas pelo Homem. Afonso sentou-se, depois de pedir o pequeno almoço, em frente dela e continuando a sorrir olhou-lhe nos olhos e tentou criar um momento lúdico "Então, achavas que ias passar despercebida no comboio com essa beleza toda?" sorrindo. A rapariga olhou intensamente para ele, e subtilmente sorriu e disse "Parece que me enganei, mas sim ainda tentei."
Ele estava curioso em saber algo sobre ela, mas não sabia o que perguntar, no entanto, no meio do silêncio ela perguntou-lhe "Diz-me, porque fizeste isto? Porque pagas-te o bilhete a uma sem-abrigo, que não conheces de lado algum?" Era a pergunta que ele mais temia, pois ele não sabia o porque ao certo daquela atitude dele... No entanto ele disse "Eu já vivi com sem-abrigos, já dormi na rua muitas vezes, convivo com ocupas e de vez enquanto convidos a jantar ou a almoçar a minha casa. Simplesmente, sei o que é, já vivi isso." Lá fora eram capazes de estar a bater, neste momento, os 20ºC mas mesmo assim, se criou, um frio de rachar naquele momento. A rapariga baixou a cabeça em jeito de tristeza e respondeu muito baixo "Eu não sou uma sem-abrigo mesmo... Fugi de casa à coisa de uma semana e já não sei o que fazer... Só me lembrei ontem a noite, que a minha madrinha vivia em Braga e ando a tentar contacta-la... Preciso de um abrigo..." Dito isto, ela começa a chorar e só agora é que o Afonso entendeu o porque dos olhos dela serem tão azuis, eram as lágrimas pressas que não conseguiram jorrar. Comovido, ele decide em ajuda-la "Diz-me, onde vive ela, onde trabalha, como contacta-la, eu ajudo-te a encontra-la". A cabeça dela levantou-se e ela olhou para o tecto como se estivesse a ver uma constelação e com um subtil sorriso diz, "eu não faço a mais menor ideia, só sei que trabalha num hospital em Braga." De novo, as lágrimas jorram dos seus olhos, e ele comenta "Diz-me, o que aconteceu para teres fugido de casa, eu posso ajudar?" No seu rosto sentia-se o medo, no seu corpo o tremer e nos seus lábios, a vergonha... No entanto, algo deu-lhe confiança para dizer o seu segredo "Eu e a minha irmã fomos violadas pelo nosso padrasto. Decidimos fugir as duas ao mesmo tempo, eu fui por um caminho, ela foi por outro e decidimos-nos encontrarmos em Braga junto a nossa madrinha." Durante horas ela contou-lhe as noites de violência, em que ele batia a mãe delas quase a matando, uma vez porque não tinha temperado a sopa do jantar dele; contou-lhe as manhãs de bebedeira em que ele vinha para casa mais morto que vivo e as fechava a cada uma num quarto, violando uma e depois a outra durante o dia dentro... muitas vezes filmando as cenas e as mostrando a outra... dias cinzentos pairavam naquela casa e nas almas destas duas gémeas a noite era cruel e intensa...

Após de ouvir aquilo tudo, Afonso levantou-se, pagou o pequeno-almoço, o almoço e o lanche e esticou-lhe a mão dizendo "Passa esta noite em minha casa, estarás segura-la e amanhã procuramos a tua madrinha"

Juntos, desta vez de mãos dadas saíram do café em direcção a casa dele...

Texto escrito para o blog Fábrica de Letras

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Conta-me uma história

Fazia aquela viagem todos os dias, sempre a mesma hora e por vezes sempre com as mesmas pessoas. Afonso, tinha sair do Porto para viajar até Braga para puder ir trabalhar e grande parte das vezes viajava de olhos fechados, numa tentativa de descansar. Nesse dia, mesmo que quisesse, não ia conseguir dormir no comboio. Num dos apeadeiros entrou uma mulher que apenas a sua presença inquietou muita gente naquela carruagem: com uns sapatos, onde um deles não tinha atacadores, as meias rasgadas na zona do joelho mas mal se via devido ao vestido que trazia, bem, vestido esse que teria visto melhores dias pois vinha bastante desgastado. Por cima do vestido, era apenas uma blusa, mas essa sim, linda toda ela trabalhada em pormenores nas mangas, golas e até os botões. O lenço que trazia, não lhe aquecia muito, tal como o gorro e as luvas. De cabeça tombada a olhar para o chão ela mal que entra encosta-se no canto da carruagem e lá fica de pé. Ele não deixa de conseguir de olhar para ela e reparar em todos estes pormenores, tal como não consegue deixar de reparar outros passageiros e nas atitudes tomadas com a entrada da sem abrigo: o senhor sentado no banco do lado direito pegou na mal que tinha no chão e num gesto de desculpa pegou nela, colocou ao lado dele e de lá tirou o jornal, fingindo que lia e deixando esse lugar ocupado com a sua bagagem; a mulher em frente dele, pegou no casaco e cobriu o lugar também; uma jovem, provavelmente da mesma idade da saem abrigo, colocou os auriculares e os óculos de sol e fingiu não a ter visto a entrar e o namorado, bem, esse fechou os olhos e fingiu um cansaço de modo a deitar se e ocupando dois lugares. Afonso não conseguiu de deixar de reparar nesses pequenos movimentos e começou a sentir-se péssimo. Mal que arrancou o comboio, o revisor surge pelas costas de Afonso e vai picar o cartão de uma senhora. É aqui que ele se lembra de tomar atitude: Levantou-se e dirigiu-se para junto da sem abrigo. Ela sentiu a sua presença e começou a tremer como se estivesse a prever algum discurso, mas ele apenas lhe disse: "quer se sentar ao meu lado?" Naquele momento, a rapariga deixou de respirar e olhou para ele: Afonso sorria com uma ar tão feliz e simpático como sempre era costume dele e ela, com os lindos olhos azuis quase em lágrima responde "muito obrigado senhor". Muito lentamente ela caminhou, sempre de cabeça baixa até ao lugar que Afonso lhe indicara, sentou-se e logo depois foi ele ao lado dela. Enchendo os pulmões com coragem ele pergunta ao ouvido dela em jeito de segredo "Não fales, abana só com a cabeça. Tens dinheiro para a viagem?", e ela dá uma resposta negativa, algo que Afonso já estaria a contar. O revisor chega ao pé deles e reparando nela, diz "Bom dia Senhor, o seu bilhete?" "Aqui esta... e já agora queria comprar outro para a minha amiga". Algo inesperado acontece, todas as pessoas olham para esta cena inclusive a sem abrigo ao que o revisor responde "Jovem, o preço no comboio é o dobro que nas estações..." " sim eu sei, não me importo". O bilhete é tirado e a rapariga guardou-o junto ao peito durante mais de meia hora e chorava, Afonso não tinha coragem de lhe perguntar se estaria bem ou não. O comboio chegou a Braga onde ela é a última a sair do comboio, e no momento em que sai do comboio, ainda de cabeça baixa, ouve a voz do Afonso "Não te esqueças de levantar a cabeça. És linda demais para ser só o chão a ver o teu rosto." Ela vira as costas e lã estava ele a sorrir para ela. Em lágrimas ela corre junto dele e abraça-o dizendo "obrigado pelo que fez por mim. O meu nome é Joana e tenho de lhe agradecer por isto tudo." "Não precisas de agradecer, apenas te quero pedir um favor" Ela sorriu pela primeira vez em toda a viagem "peça tudo, eu farei isso" Afonso olhou para ela, tornou-se muito serio e de repente disse lhe nos olhos com apenas um sorriso "vem tomar o pequeno-almoço comigo e conta-me a tua historia". Juntos no café mais próximo da estação falaram durante horas...

Texto escrito para o blog Fábrica de Letras