sábado, 5 de março de 2011

Conta-me uma história - ||

Pouco depois do comboio em direcção ao Porto partir, já eles estavam num simples café da zona da estação. Ela ainda trazia consigo o bilhete na mão e parecendo que não, já não era apenas o chão a admirar a sua beleza: o seu rosto era lindo, tal como os olhos que enchiam de inveja as lagoas mais lindas alguma vez descobertas pelo Homem. Afonso sentou-se, depois de pedir o pequeno almoço, em frente dela e continuando a sorrir olhou-lhe nos olhos e tentou criar um momento lúdico "Então, achavas que ias passar despercebida no comboio com essa beleza toda?" sorrindo. A rapariga olhou intensamente para ele, e subtilmente sorriu e disse "Parece que me enganei, mas sim ainda tentei."
Ele estava curioso em saber algo sobre ela, mas não sabia o que perguntar, no entanto, no meio do silêncio ela perguntou-lhe "Diz-me, porque fizeste isto? Porque pagas-te o bilhete a uma sem-abrigo, que não conheces de lado algum?" Era a pergunta que ele mais temia, pois ele não sabia o porque ao certo daquela atitude dele... No entanto ele disse "Eu já vivi com sem-abrigos, já dormi na rua muitas vezes, convivo com ocupas e de vez enquanto convidos a jantar ou a almoçar a minha casa. Simplesmente, sei o que é, já vivi isso." Lá fora eram capazes de estar a bater, neste momento, os 20ºC mas mesmo assim, se criou, um frio de rachar naquele momento. A rapariga baixou a cabeça em jeito de tristeza e respondeu muito baixo "Eu não sou uma sem-abrigo mesmo... Fugi de casa à coisa de uma semana e já não sei o que fazer... Só me lembrei ontem a noite, que a minha madrinha vivia em Braga e ando a tentar contacta-la... Preciso de um abrigo..." Dito isto, ela começa a chorar e só agora é que o Afonso entendeu o porque dos olhos dela serem tão azuis, eram as lágrimas pressas que não conseguiram jorrar. Comovido, ele decide em ajuda-la "Diz-me, onde vive ela, onde trabalha, como contacta-la, eu ajudo-te a encontra-la". A cabeça dela levantou-se e ela olhou para o tecto como se estivesse a ver uma constelação e com um subtil sorriso diz, "eu não faço a mais menor ideia, só sei que trabalha num hospital em Braga." De novo, as lágrimas jorram dos seus olhos, e ele comenta "Diz-me, o que aconteceu para teres fugido de casa, eu posso ajudar?" No seu rosto sentia-se o medo, no seu corpo o tremer e nos seus lábios, a vergonha... No entanto, algo deu-lhe confiança para dizer o seu segredo "Eu e a minha irmã fomos violadas pelo nosso padrasto. Decidimos fugir as duas ao mesmo tempo, eu fui por um caminho, ela foi por outro e decidimos-nos encontrarmos em Braga junto a nossa madrinha." Durante horas ela contou-lhe as noites de violência, em que ele batia a mãe delas quase a matando, uma vez porque não tinha temperado a sopa do jantar dele; contou-lhe as manhãs de bebedeira em que ele vinha para casa mais morto que vivo e as fechava a cada uma num quarto, violando uma e depois a outra durante o dia dentro... muitas vezes filmando as cenas e as mostrando a outra... dias cinzentos pairavam naquela casa e nas almas destas duas gémeas a noite era cruel e intensa...

Após de ouvir aquilo tudo, Afonso levantou-se, pagou o pequeno-almoço, o almoço e o lanche e esticou-lhe a mão dizendo "Passa esta noite em minha casa, estarás segura-la e amanhã procuramos a tua madrinha"

Juntos, desta vez de mãos dadas saíram do café em direcção a casa dele...

Texto escrito para o blog Fábrica de Letras

4 comentários:

  1. É um bom começo para uma história. A parte má fica para trás, resumida em meia duzia de linhas e o que vem, agora, será de certo melhor! Dá vontade de continuar a ler... =)

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  2. Esta narrativa pode ser aperfeiçoada a nível linguística e ter continuidade porque se trata de uma narrativa aberta.
    Esta narrativa retoma um dos subtemas mais desenvolvidos nesta blogagem colectiva da Fábrica de Letras: a violação.
    Há muitas formas de violências, todavia esta deixa marcas para quem foi vítima do violador.
    Espero que continue a história para poder acompanhar o desenrolar dos acontecimentos.

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  3. Viva
    Desde já o meu obrigado a quem me visitou.

    para Briseis:
    Obrigado pelo teu comentário. Sem dúvida que a parte má fica para trás, é isso que nos faz crescer e acreditar que o que virá amanhã será melhor do que o que temos hoje.

    para Natália:
    Obrigado também pelo comentário. Sem dúvida que sou um amador e também sou de acordo que é isso que me faz mover desta maneira... Continua a ser um tema actual e do qual ainda hoje existem muitos tabus e preconceitos.
    A história continuará, prometo.

    Obrigado =)

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  4. Uma otima participação...
    A vida é tão bela. Não sei porque a violência faz parte da vida de algumas pessoas..
    O amor é tão especial e Puro..
    A Violência vem acompanhando o Mundo desde o seu principio. É uma pena que ainda existe, das mais diversas formas. Tudo é muito triste. O que nos resta é levantar a bandeira da Paz.. Proclamar por ela.
    A interação de amigos tbém entrou nesta..
    http://sandrarandrade7.blogspot.com/2011/03/coletiva-tema-violencia.html
    Não podemos permitir o seu alastramento. Temos sim é que ajudar a combater e cortar as raízes.
    Carinhosamente venho compartilhar contigo este texto.
    Precisamos sim nos unir em pensamento e passar todas as energias positivas e combatê-lo..
    Falar da vida é muito melhor..Do amor ainda Mais. A Paz então nem se fala..
    Sandra

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